domingo, 27 de abril de 2025

Diário de Viagem

 


 CICLOS

Voltávamos todos para casa,

alguns, há décadas, ausentes;

outros que haviam partido

há pouco, recentemente; 

alguns sequer se ausentaram,

vivendo suas jornadas,

de uma vez, simultaneamente.

 

Almas em movimento,

por todas tu esperavas,

Mamãe, com contentamento, 

em tua casa banhada

pela luz do sol nascente

e pelas águas salgadas

do oceano, a sua frente.

 

Em meu peito impaciente,

mamãe, já se antecipava

o momento da chegada,

quando enfim nos abraçavas

e tudo se iluminava.

Como se o tempo voltasse

à limpidez das nascentes.

 

Antes de cravar seus dentes

nas profundezas da alma,

marcando sua passagem

nos sulcos rasgando a carne,

nos lapsos turvando a mente,

na turbulência das águas

onde navegam as gentes.

 

Tua dor, a carregaste, 

bem sei, quão dignamente, 

estandarte a indicar-me 

o caminho, cujo espinho, 

eu já o sinto na carne. 

Hoje, carrego no peito, 

a dor, uma rosa escarlate,

 

Por isso, o poema 

arde, sangra, pulsa. 

Como uma úlcera,

mamãe, uma ferida aberta, 

dentro do peito da gente. 

Ontem, sonhei com as ruínas

da casa que construístes.

 

Por uma rampa suspensa 

entre a murada e o chão, 

eu via a demolição,

Suas paredes tombavam, 

mãmãe, a alevantarem 

o pó dos anos felizes.

 

Dilacerada a visão,

O coração a ruir,

eu caminhava, mamãe,

quando, de repente, vi 

erguer-se uma parede

esplêndida, desde o chão,

cravejada de cristais,

esmeraldas e rubis.

 

E elas brilhavam, mamãe,

Coloridas e lavadas,

suas pedras cintilavam,

como os seixos nas nascentes.

Olhei o céu e era azul,

segui o voo das aves,

até perder-se no verde 

do imenso mar à frente.

 

E tudo resplandecia,

mamãe, quando acordei.

Tudo era pertinente 

aos olhos de Deus, pensei.

Como a parede surgindo

dos escombros das ruínas, 

entendo que nada morre

sem que renasça das cinzas.

 

Por isso, não digo adeus,

mamãe, nem mesmo até breve.

Enquanto houver voz em mim,

ecoarão as palavras

de um diálogo sem fim,

fluindo entre mim e ti,

sobre tudo o que nos una,

que nos instigue e enleve.

 

Pois que ainda estás aqui,

vivendo na voz dos pássaros,

na verdura dos jardins, 

nas ondas do mar sem fim.

Vivendo dentro de mim,

mamãe, e a te traduzirem

os versos que em mim se inscrevem.

 

Hoje o poema se curva

diante do teu amor

e de sua fonte, bebe.

Poesia é matar a sede.

 

Amneres, 27 de abril de 2025.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

DIÁRIO DE VIAGEM

                                        Eros e Psiquê (Antonio CANOVA (1757-1822) - Museu do Louvre - Paris)


 

Awake

 

“Quem és? Perguntei ao desejo.

Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada”.

(Desejo, Hilda Hilrst)

 

Ultimamente, a morte, em cavalgada,

voltou a sussurrar ao meu ouvido

ser breve a vida, um sopro, uma lufada,

e se é meu tempo, estará comigo.

 

A ela, digo: espera, desalmada,

deixa que o amor me tome, destemido,

e que em seu dorso eu monte, em disparada,

uma vez mais e então perca os sentidos.

 

E quando enfim a alma for liberta

da humana condição de ser mortal,

Será ainda o amor, uma centelha

 

A conduzi-la aos céus, entre as estrelas,

lá onde habitam a luz e a fé despertas,

no infinito templo do Graal.

 

                                    Amneres, janeiro de 2024

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

DIÁRIO DE VIAGEM

 


Faça-se luz

 

Os cristais

das palavras

nascem

nas entranhas

da alma,

magma

formando-se

na textura da

língua,

úmida,

mole,

quente,

ardente,

viajando

em busca

da fala

que enfim

os liberte

dos silêncios

abissais

dos veios

escuros

que percorrem,

cegos,

em busca da luz

que os guie

à superfície

e os transforme,

liquefeitos,

em frases

de quartzo,

espelhando

sóis e arco-íris,

para que enfim

brilhem

no poema

dos olhos,

encharcados

pelo impacto

do encontro

com o amor

em êxtase,

advindo

do Ato

da criação

das águas,

das rochas

e dos seres.

 

    Amneres, dezembro de 2023

 

sexta-feira, 13 de outubro de 2023



Semiótica


O dia nublado é belo.

Semissol furando as frestas

do telhado de nuvens

e o vento trazendo

a chuva de longe,

sussurrando semissons

cifrados, em sintonia

com as cores do céu;

as águas do lago;

as velas dos barcos

deslizando ao longe

a seguirem em paz,

no fluxo do tempo

em que os olhos

exaustos pousam

na paisagem à frente

e esquecem a dor,

o clima extremo,

a castigarem

o Centro-Oeste

e a alma imortal

de um ser vivente

denominado “eu”,

quando a si mesmo

se refere.


O vento ruge

afinal mais forte,

trazendo as velas

e a chuva para perto

da linha do horizonte;

hora de despedir-se

e seguir em frente,

pensa o “eu” profundo,

falando muito mais

de despedidas

(havidas e iminentes)

de amores seus

do que do momento

de puro deleite

em que contempla

as cores da tarde,

quando a luz

captura os sentidos

e a alma ascende,

seguindo o trajeto

dos olhos marejados,

no instante mesmo

em que acompanham

o voo de uma ave

até o alto, tão alto

a ponto de fundir-se

ao azul excelso.


E é quando a alma

volta enfim ao porto

do tempo presente,

no corpo seminal

da tarde em progresso.


            (Amneres, outubro, 2023)