quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

DIÁRIO DE VIAGEM

                                        Eros e Psiquê (Antonio CANOVA (1757-1822) - Museu do Louvre - Paris)


 

Awake

 

“Quem és? Perguntei ao desejo.

Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada”.

(Desejo, Hilda Hilrst)

 

Ultimamente, a morte, em cavalgada,

voltou a sussurrar ao meu ouvido

ser breve a vida, um sopro, uma lufada,

e se é meu tempo, estará comigo.

 

A ela, digo: espera, desalmada,

deixa que o amor me tome, destemido,

e que em seu dorso eu monte, em disparada,

uma vez mais e então perca os sentidos.

 

E quando enfim a alma for liberta

da humana condição de ser mortal,

Será ainda o amor, uma centelha

 

A conduzi-la aos céus, entre as estrelas,

lá onde habitam a luz e a fé despertas,

no infinito templo do Graal.

 

                                    Amneres, janeiro de 2024

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

DIÁRIO DE VIAGEM

 


Faça-se luz

 

Os cristais

das palavras

nascem

nas entranhas

da alma,

magma

formando-se

na textura da

língua,

úmida,

mole,

quente,

ardente,

viajando

em busca

da fala

que enfim

os liberte

dos silêncios

abissais

dos veios

escuros

que percorrem,

cegos,

em busca da luz

que os guie

à superfície

e os transforme,

liquefeitos,

em frases

de quartzo,

espelhando

sóis e arco-íris,

para que enfim

brilhem

no poema

dos olhos,

encharcados

pelo impacto

do encontro

com o amor

em êxtase,

advindo

do Ato

da criação

das águas,

das rochas

e dos seres.

 

    Amneres, dezembro de 2023

 

sexta-feira, 13 de outubro de 2023



Semiótica


O dia nublado é belo.

Semissol furando as frestas

do telhado de nuvens

e o vento trazendo

a chuva de longe,

sussurrando semissons

cifrados, em sintonia

com as cores do céu;

as águas do lago;

as velas dos barcos

deslizando ao longe

a seguirem em paz,

no fluxo do tempo

em que os olhos

exaustos pousam

na paisagem à frente

e esquecem a dor,

o clima extremo,

a castigarem

o Centro-Oeste

e a alma imortal

de um ser vivente

denominado “eu”,

quando a si mesmo

se refere.


O vento ruge

afinal mais forte,

trazendo as velas

e a chuva para perto

da linha do horizonte;

hora de despedir-se

e seguir em frente,

pensa o “eu” profundo,

falando muito mais

de despedidas

(havidas e iminentes)

de amores seus

do que do momento

de puro deleite

em que contempla

as cores da tarde,

quando a luz

captura os sentidos

e a alma ascende,

seguindo o trajeto

dos olhos marejados,

no instante mesmo

em que acompanham

o voo de uma ave

até o alto, tão alto

a ponto de fundir-se

ao azul excelso.


E é quando a alma

volta enfim ao porto

do tempo presente,

no corpo seminal

da tarde em progresso.


            (Amneres, outubro, 2023)

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Diário de Viagem

 




Drummondiana


No meio do caminho

tinha uma pedra

que logo contornei

e segui adiante.


Tinha uma pedra

mas a pulei, 

de súbito, no susto,

e segui adiante.


Tinha uma pedra

e simplesmente

a ignorei

e segui adiante.


Tinha uma pedra,

olhei-a de relance,

admirei sua presença pétrea

e segui adiante.


Tinha uma pedra

incorporada à paisagem,

em sua beleza bruta de pedra

e segui adiante.


Tinha um pedra

e ela era parte de mim

(trago-a comigo no rim)

e segui adiante.


Tinha uma pedra,

olhei-a e eu era a pedra

no meio do caminho

(que me leva a mim).


          (Amneres, agosto, 2023)

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Diário de Viagem


 Magmas


Um objeto voador

não identificado

sobrevoou o Plano

Piloto lá do alto do

pico da Torre de TV.

Será anjo ou ET,

penso cá comigo

sem saber ao certo

o que tenho sonhado,

imaginado ou visto

sob o imenso céu

do Planalto,  

desde que aqui pousei,

em tempos longínquos.


Agora mesmo, eu vi

passar por mim o flash

da sombra de um zumbi,

atravessando o asfalto,

vestido com mulambos,

como um rei portando

um manto maltrapilho,

disfarçado de mendigo

ou um Jesus da cena épica 

do Auto de um Ariano

compadecido, 

a me lembrar o quão 

distante estamos 

da cidade profetizada

por Dom Bosco.


Segui pelo Eixo Monumental

até a altura do Memorial JK,

onde a escultura de um 

presidente icônico

aponta o horizonte vasto,

além do largo terrapleno 

onde se assenta a praça, 

circundada por palácios.

Em todo o campo de visão,

o céu azul é soberano

e lá no fundo, o espelho

das águas do Lago Paranoá

reflete o que é de sofrer

e o que é de sonhar

nessa paisagem

de sutis arcanos.


Manter o encanto é possível,

quando se vive tanto?

Pergunta-se a alma 

sexagenária, ao perder o olhar 

sobre os arcos de Oscar.

Das ruínas do Templo

de Zeus ao Coliseu romano,

das Pirâmides do Egito

ao Kremlin de Nikolai,

as colunas sustentaram

o cetro de deuses, faraós,

czares e generais.

Nas terras altas do planalto,

ergueram tronos e catedrais,

hastes suspensas 

sob palácios colossais. 


E a multidão sem rumo

segue, abandonada

à própria sorte, desde

tempos imemoriais.

Horda de servos e miseráveis,

mortos-vivos, sem ter

quem lhes chore ou salve.

Pode-se vê-los nos becos,

sob escombros, vagando

pelas ruas das cidades.

Esquálidas silhuetas

sangrando a felicidade, 

ruínas do pensamento.


Nos magmas subterrâneos

das palavras, o poema

expele sua lava de silêncio.