sexta-feira, 15 de julho de 2011

DIÁRIO DE VIAGEM

O mar de minha aldeia

Com os olhos na lua cheia bem em frente à varanda, penso na alegria de Sarayu, a terceira pessoa da Santíssima Trindade, descrita no livro A Cabana, de William P. Young. Li a história de um fôlego, de um dia para o outro, nas noites e nos intervalos do dia em que papai e mamãe cochilavam.
Na idade em que eles se encontram, um sono leve e constante os acompanha durante todo o dia, como os recém nascidos, penso e me enterneço. Poder niná-los, estar com eles, voltar para casa sempre que o calo apertar, isso é um privilégio para poucos. E eu sou uma entre esses felizardos.
Choveu torrencialmente, nessa semana em João Pessoa. A água do mar muda de cor, fica marrom, nesse tempo enxarcado e quando abre uma réstia de sol, adoro vê-lo eriçado, como se sentisse frio com o vento agitado assanhando-lhe as ondas.
O mar da Praia do Cabo Branco, na Capital da Paraíba, não é qualquer mar, é o meu mar, meu pedaço particular de paraíso. Como o rio da aldeia do poeta Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. A gente emigra de um lugar e carrega para sempre dentro da gente essa paisagem particular.
Depois de 32 anos de Brasília, ainda hoje o Cabo Branco em mim habita, escrevo, de volta à cidade para um pequeno pouso. Daqui a três dias, vou outra vez levantar vôo, comemoro, alegre, de dentro da rede de balanço onde repouso e assisto à lua cheia do planalto o meu peito e o infinito iluminar.

DIÁRIO DE VIAGEM

Florescer e queimar

Saio do prédio pela Chapelaria. Subo a rampa do Congresso e contorno o largo gramado da Esplanada dos Ministérios. Contempo a paisagem pela janela do táxi. Faz uma tarde linda. Fria e seca nesse mês de julho. A seca chegou com toda sua dureza e exuberância. O gramado castigado pelo frio e pelo sol já prenuncia a hora das queimadas, penso e me despeço dessas terras altas, em direção ao mar.
Estou de férias. Vinte e cinco longos e esplendorosos dias da pura luz do verão dos trópicos prometem secar de vez as últimas águas em minha visão. Levanto os olhos do caderno em que escrevo e me vejo frente a frente com a escultura dos Dois Candangos, na praça de concreto bem em frente ao Palácio do Planalto.
Depois, pela L-4, sigo em direção ao JK. No caminho, quase em frente ao Balão do Aeroporto, deparo-me com o primeiro pedaço de terra queimado pelo fogo. É o primeiro foco que vejo de uma série de incêndios que costumam castigar o Cerrado, nessa estação.
Mas, paradoxalmente, é também a época das floradas, quando Bouganvilles, flamboyands, ipês e toda sorte de flor exótica colorem o corpo do Cerrado. Como a nos dizer quão bela é a vida, penso. Mesmo nas terras áridas do Planalto, mesmo no solo roto do meu coração.
Dou uma pausa nos pensamentos para assistir ao avião levantar vôo. Estamos na cabeceira da pista, só aguardando as instruções da Torre de Comando. Um minuto e estamos em pleno ar. Pela janela, vejo a Ponte Velha e a Ponte JK e entre uma e outra o corpo prateado do Lago Paranoá.
Depois, toda a cidade vai ficando mais e mais distante. O coração do homem, assim como o corpo dessa aeronave, está predestinado ao vôo. E mesmo quando acontece de haver um pouso forçado, nosso destino está inscrito no DNA: reparar os danos e outra vez voar. 

sábado, 2 de julho de 2011

DIÁRIO DE VIAGEM

O velho, o mar e um avião

Durante o voo, milhas e milhas acima do chão, faço um intervalo na leitura e penso em como é bom viajar, estar em trânsito entre um destino e outro. Nas páginas do livro, o velho Santiago luta corajosamente sua última batalha e se pergunta se seu adversário sabe o que está fazendo, ao conduzi-lo cegamente mar a dentro ou se está tão desesperado quanto ele, cuja existência é um sopro que subitamente pode cessar.
A metáfora do mar exerce um estranho fascínio sobre minha alma. Será que um dia voltarei ao seu abrigo? Será ele, o profundo oceano, com seu cheiro, suas cores, seus rumores, quem embalará a paz de meu último suspiro? Enquanto isso, vivo minha saga particular entre um lugar e outro, entre uma dor e outra, entre um amor e outro.
Deixei meu pai à beira-mar da Praia do Cabo Branco com um olhar distante de quem vai partir. No fundo, todos nós sabemos que está próxima a hora, mas ninguém quer deixá-lo ir. Especialmente, minha mãe teme o porvir, teme não saber como prosseguir para completar sua própria trajetória. Após 57 anos, a vida de um casal como que se mistura, penso do alto de um avião em pleno voo. Já é noite em meu coração, umbroso pela ideia de ruir.
Como Santiago, meu velho pai luta com as forças que lhe restam essa que talvez seja sua última batalha. E como o velho pescador de Hemingway*, recolher-se talvez não signifique uma derrota, mas o reconhecimento de afinal ser chegada a hora de se despedir. O prêmio da longevidade em uma mente lúcida só é concedido a poucos, penso e o pensamento traz alento ao que há de vir.
Como a brisa suave do mar de Havana embalava o sono de Santiago, também os ventos amenos do Atlântico assistam ao leito de meu pai, peço, em prece, ao Pai. E que nós – minha mãe, eu e meus irmãos – saibamos dele um dia despedir-se com a mesma coragem com que ele enfrenta a vida. A um só tempo longa e tão efêmera e tão breve, como breve é o pensamento que me escapa leve pelas páginas desse livro de viagem, durante o voo, milhas e milhas acima do chão...

DIÁRIO DE VIAGEM

 
Ver o sol se pôr
 
Rosa, lilás e cinza, o poema chama-me
quase a despedir-se na tarde a se dirimir.
- Olha-me, senhora, minha amiga antiga;
- despe-me com os olhos e então me devoras;
 
- Olha-me para que a noite caia sobre nossas
almas claras, uma noutra a se diluir. Olho-o
e sou tomada pela aura de uma hora entre
dia e noite onde luz e sombra fundem-se.
 
Olho-o e seu sopro outra vez me envolve;
olho-o e quase posso materializar sua fala;
olho-o e então colho-o mas eis que ele foge
 
Como foge a tarde. E então resta a noite
e o fundo silêncio, efêmeras curvas
do espaço-tempo entre mim e ti.