sábado, 2 de julho de 2011

DIÁRIO DE VIAGEM

O velho, o mar e um avião

Durante o voo, milhas e milhas acima do chão, faço um intervalo na leitura e penso em como é bom viajar, estar em trânsito entre um destino e outro. Nas páginas do livro, o velho Santiago luta corajosamente sua última batalha e se pergunta se seu adversário sabe o que está fazendo, ao conduzi-lo cegamente mar a dentro ou se está tão desesperado quanto ele, cuja existência é um sopro que subitamente pode cessar.
A metáfora do mar exerce um estranho fascínio sobre minha alma. Será que um dia voltarei ao seu abrigo? Será ele, o profundo oceano, com seu cheiro, suas cores, seus rumores, quem embalará a paz de meu último suspiro? Enquanto isso, vivo minha saga particular entre um lugar e outro, entre uma dor e outra, entre um amor e outro.
Deixei meu pai à beira-mar da Praia do Cabo Branco com um olhar distante de quem vai partir. No fundo, todos nós sabemos que está próxima a hora, mas ninguém quer deixá-lo ir. Especialmente, minha mãe teme o porvir, teme não saber como prosseguir para completar sua própria trajetória. Após 57 anos, a vida de um casal como que se mistura, penso do alto de um avião em pleno voo. Já é noite em meu coração, umbroso pela ideia de ruir.
Como Santiago, meu velho pai luta com as forças que lhe restam essa que talvez seja sua última batalha. E como o velho pescador de Hemingway*, recolher-se talvez não signifique uma derrota, mas o reconhecimento de afinal ser chegada a hora de se despedir. O prêmio da longevidade em uma mente lúcida só é concedido a poucos, penso e o pensamento traz alento ao que há de vir.
Como a brisa suave do mar de Havana embalava o sono de Santiago, também os ventos amenos do Atlântico assistam ao leito de meu pai, peço, em prece, ao Pai. E que nós – minha mãe, eu e meus irmãos – saibamos dele um dia despedir-se com a mesma coragem com que ele enfrenta a vida. A um só tempo longa e tão efêmera e tão breve, como breve é o pensamento que me escapa leve pelas páginas desse livro de viagem, durante o voo, milhas e milhas acima do chão...

DIÁRIO DE VIAGEM

 
Ver o sol se pôr
 
Rosa, lilás e cinza, o poema chama-me
quase a despedir-se na tarde a se dirimir.
- Olha-me, senhora, minha amiga antiga;
- despe-me com os olhos e então me devoras;
 
- Olha-me para que a noite caia sobre nossas
almas claras, uma noutra a se diluir. Olho-o
e sou tomada pela aura de uma hora entre
dia e noite onde luz e sombra fundem-se.
 
Olho-o e seu sopro outra vez me envolve;
olho-o e quase posso materializar sua fala;
olho-o e então colho-o mas eis que ele foge
 
Como foge a tarde. E então resta a noite
e o fundo silêncio, efêmeras curvas
do espaço-tempo entre mim e ti.
 

segunda-feira, 2 de maio de 2011

DIÁRIO DE VIAGEM

Sobre indulgência

O irrevelado,
De profundis,
Assim é Deus,
E seus mistérios:
O corpo e o sangue de Cristo
No ato da comunhão,
A fala abissal do silêncio
Descerrando a névoa dos olhos,
O terceiro olho,
O que reza o coração.

Saio à varanda,
Aspiro o ar fresco
Da noite de maio
E quase posso tocar
O sopro ameno
De um todo harmônico.
Corro ao teclado
E escrevo:
O poema me vem assim,
Recendendo a orvalho,
Remido de excessos.

Colho-o como
A uma rosa
De um etéreo jardim.
Colho-o
E vos ofereço,
Em rubras palavras
Impronunciadas,
Exalando um doce
Cheiro de jarsmim.

domingo, 10 de abril de 2011

DIÁRIO DE VIAGEM

Bilhete
de uma poetisa
de pileque


Olha só:
“Agora é tarde, Inês é morta.

Ser ou não ser, eis a questão.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo e sempre e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

Sonhar mais um sonho impossível,
lutar quando é fácil ceder,
vencer o inimigo invencível,
negar quando a regra é vender.

Sofrer a tortura implacável,
romper a incabível prisáo,
voar no limite improvável,
tocar o inacessível cháo.

Você e eu, eu e você,
Eu e você, você e eu,
Juntinhos.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo”.

Olha só:

Que me perdoem Antônio Ferreira,
Shakespeare, Drummond, Vinicius,
Camões, Chico Buarque, Joe Darion,
Tim Maia e Mitch Leigh,

Mas eu só estou bêbada
E como se diz,
O que digo aqui não se escreve.

Então é isso,
Tchau,
Fui.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

DIÁRIO DE VIAGEM

Chico, a lua e a Ásia

Chorei, amigo, da primeira à última frase soprada por tua voz ao meu ouvido. Dita como dizes, a vida é pura arte. Dançaste no palco como um pássaro o faz no espaço livre. Ficaste leve, quase incorpóreo, tomada que estava tua alma pela perfeita simbiose entre ator e homem. A lua vem da Ásia, mas a estrela brilha aqui na Terra Brasilis, na performance irretocável de um grande ator. Salve, Chico Diaz.

                    * Texto escrito em homenagem ao ator brasileiro Chico Diaz, no monólogo A Lua vem da Ásia, baseado na obra de Campos de Carvalho.

terça-feira, 29 de março de 2011

DIÁRIO DE VIAGEM

Cheers

Aaaaaaahhhhh...
O silêncio
parece gritar
ao meu encalço.

Algo quebrou
dentro de mim,
ainda posso ouvir
seus estilhaços.

O copo quebrou,
escorregou
de minhas mãos
por entre os dedos
e se partiu
em mil pedaços.

Guardei silêncio,
juntando
os cacos de fora
como se fossem
os de dentro.

Quando acordei,
havia sol
e ouvi o som
da voz dos pássaros.

Embriagada
pela luz
enfim, brindei:
- Ao novo tempo

E ao que se foi
e que me fez,
Pois dessa vida
só se leva
o aprendizado.

sábado, 19 de março de 2011

DIÁRIO DE VIAGEM

Mergulho

Quando a sandália havaiana quebrou e levou junto com ela o amuleto, pensei: lá se foi o último elo, um elefantinho da sorte grudado à alça de vestir os dedos. Então, descalça, atravessei o asfalto e pisei a areia branca, ainda morna, da manhã de março. - Viver é isso: eterno fim, eterno recomeço, sussurrei ao vento, deixando o sal das lágrimas misturar-se ao sal daquelas águas. - Bendita seja a luz a colorir tanto esplendor, agradeci ao Criador. E mergulhei naquele mar, o corpo entregue às mansas ondas, a alma sonza, a flutuar.