sábado, 31 de março de 2012


Sobre o novo Velho Mundo

III

Chegamos à estação de King’s Cross, após cerca de duas horas de viagem no Eurostar – o trem de alta velocidade, construído sob o mar do Canal da Mancha, ligando Paris a Londres. Há 27 anos, quando morei na capital inglesa, essa fantástica obra de engenharia estava sendo projetada e fazia-se a travessia de ferry boat.
Lembro-me da primeira vez em que fiz esse percurso. O mar do Canal da Mancha estava especialmente agitado e o barco batia tanto que minha amiga Silvia Helena, com quem eu viajava, teve sérios problemas de enjoo. E isso aconteceu com muitos dos passageiros que faziam a travessia com a gente.
Eu não. Acostumada a fazer longos passeios, a bordo das frágeis jangadas dos pescadores da Praia do Cabo Branco, em João Pessoa -, sempre tive uma tolerância impressionante ao balanço do mar.
Mesmo ali, no Canal da Mancha, com o mar jogando furiosamente a embarcação, adorei sentir o cheiro acre-doce da maresia, o vento frio batendo em minha face e o gosto salgado das espumas tocando meus lábios, quando uma onda mais afoita espirrava sobre o casco. Mas isso foi há muito tempo.
Naquela tarde fria de fevereiro, desembarcamos - eu e minha prima, Maria Antonieta - na estação central de Londres pelo túnel de 51 quilômetros construído abaixo do leito do mar. Eu estava ansiosa para rever Silvia, depois de tanto tempo e reconheci-a imediatamente, em meio à multidão, vestida num casaco vermelho.
Ficamos emocionadas com o reencontro. Após 27 anos, éramos a um só tempo outras e as mesmas. Mulheres maduras a essa altura da vida, abençoadas com a graça da maternidade, marcadas por tantas dores e amores, ao longo de mais de duas décadas, permanecia em nós a mesma empatia, a compreensão mútua, o amor fraterno como só se encontra no solo fértil das verdadeiras amizades.
Saímos da estação diretamente para o casarão de três andares, onde duas décadas atrás, moramos num pequeno estúdio, alugado por Mr. Alexander, nosso Senhorio, um inglês absolutamente encantador que nos conquistou de cara pela delicadeza e cuidados com nosso bem-estar e segurança.
Mr. Alexander era casado com Janeth, uma senhora escocesa que algumas vezes nos convidava a tomar o chá das cinco, em sua agradabilíssima companhia. Só que o chá das cinco de Janeth era regado ao mais puro uísque escocês e a boa conversa com o casal de senhorios costumava estender-se até a noite, depois de alguns drinques e muitas risadas.
E havia Ron, o charmoso filho do queridíssimo casal que, de cara, conquistou o coração de Silvia Helena. Sua extrema educação e sutileza britânica, no entanto, terminou por adiar o romance. Minha querida amiga chegou mesmo a duvidar de seu real interesse nela, embora não raras vezes nos levasse e buscasse, em seu próprio carro, aos nossos inúmeros passeios de descoberta pela agitada noite londrina.
Deixamos as malas em casa e fomos conhecer o Tate Museum, o mais novo empreendimento da famosa galeria inglesa. Estranhamente, não fazia o frio cortante do inverno em Paris, embora os termômetros medissem menos um grau.
Entramos no museu e por algumas horas nos deslumbramos com uma incrível coleção de obras do modernismo europeu. Parecíamos outra vez meninas, descobrindo os encantos desse sempre renovado vigor cultural do Velho Mundo. Não faltaram também boas risadas, quando chegamos ao setor destinado à arte contemporânea e nos deparamos com algumas, a princípio, incompreensíveis – e premiadas – instalações, como a obra Sunflower Seeds, uma impressionante montanha de centenas de milhares de sementes de girassol bem no meio do vão de uma sala.
A grandeza da obra, na verdade, está no fato de que cada uma daquelas minúsculas sementes serem feitas de porcelana e terem sido pintadas à mão, individualmente, por mil e seiscentos artesãos chineses. Sunflower Seeds é uma instalação criada por Ai Wei Wei, um dos mais importantes artistas da atualidade, famoso pelo enfrentamento do fechado Governo da China em defesa da democracia e dos direitos humanos.
Quando saímos do museu, a velha Londres nos brindou com um espetáculo da mais pura beleza. Caía uma tempestade de neve que levava adultos e crianças a acorrerem ao calçadão em frente ao Rio Tamisa e brincarem como crianças de jogar bolas de neve uns nos outros. É claro que imediatamente entramos na brincadeira e quando por fim entramos numa pizzaria alguns metros depois do museu, estávamos literalmente encharcadas de neve e exaustas de tanto correr e rir.
Depois voltamos para casa onde Ron, o filho de Mr. Alexander, que se tornara marido de Silvia Helena, nos esperava com um belo jantar e uma garrafa de um delicioso vinho tinto que nos esquentou o corpo e o coração. Sim, porque quando acabou nossa temporada em Londres, há 27 anos, eu voltei a Brasília para terminar o curso de jornalismo na UnB e Silvia seguiu para uma temporada em Paris. Foi quando Ron finalmente tomou uma atitude. Foi a Paris com uma dúzia de rosas e poucos meses depois estavam juntos, no mesmo velho casarão em que tínhamos morado por sete meses, na condição de inquilinas. Só que, dessa vez, Silvia e Ron eram marido e mulher. Mas isso já é uma história para outra crônica. Quem viver lerá.

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