terça-feira, 27 de março de 2018
Despoesia
Duas araras,
azuis e amarelas,
voam baixo,
raspando o teto
do carro.
A tarde cai
e tudo é possível,
no instante
onde cabem Deus
e o indizível.
A gata persa
espreita, à porta,
quando giro a chave,
ela range (a porta)
e arranha o piso.
Em Brasília,
a madeira trabalha mais
(dizem).
Deve ser por isso
que tudo é concreto e vidro
nos palácios de Niemeyer.
Tantas formas
formam as nuvens
quantos são os sonhos,
em meus olhos de sal.
O verso é portal
onde passo e permaneço:
pedra fundamental.
Daqui do alto,
dá para ver
o começo do mundo,
nos relevos
do Planalto.
(Meu coração
e o cerrado seco,
paisagens de fins
e recomeços).
Há sombra e luz
nesses crepúsculos.
Bichos geográficos
desenhando mapas
no topo do céu.
A gata pula do chão
à cadeira e dela,
à escrivaninha.
Nessa tênue linha
entre o vão e os objetos,
o poema se enrosca
às patas da felina
e dá o salto.
De manhãzinha,
é bom sonhar,
quase dormir,
quase acordar.
O dia chega
e passa por mim,
sem deixar rastros.
Quase interrompo
seu fluxo automático.
Tudo é despoesia
nesses dias,
mas despoesia
é ainda o poema
acontecendo.
Há um rio de vozes
no vazio.
Lá fora, chove tanto
quanto aqui dentro.
O que não acaba,
nunca começou:
eternidade.
Um raio, seguido
do estrondo
de um trovão,
põe o mundo
em movimento.
Gira a rosa dos ventos
até fundir-se à luz
de um novo dia
(Barco ancorado ao cais).
Que venha brando
e seja de paz.
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