sexta-feira, 13 de outubro de 2023



Semiótica


O dia nublado é belo.

Semissol furando as frestas

do telhado de nuvens

e o vento trazendo

a chuva de longe,

sussurrando semissons

cifrados, em sintonia

com as cores do céu;

as águas do lago;

as velas dos barcos

deslizando ao longe

a seguirem em paz,

no fluxo do tempo

em que os olhos

exaustos pousam

na paisagem à frente

e esquecem a dor,

o clima extremo,

a castigarem

o Centro-Oeste

e a alma imortal

de um ser vivente

denominado “eu”,

quando a si mesmo

se refere.


O vento ruge

afinal mais forte,

trazendo as velas

e a chuva para perto

da linha do horizonte;

hora de despedir-se

e seguir em frente,

pensa o “eu” profundo,

falando muito mais

de despedidas

(havidas e iminentes)

de amores seus

do que do momento

de puro deleite

em que contempla

as cores da tarde,

quando a luz

captura os sentidos

e a alma ascende,

seguindo o trajeto

dos olhos marejados,

no instante mesmo

em que acompanham

o voo de uma ave

até o alto, tão alto

a ponto de fundir-se

ao azul excelso.


E é quando a alma

volta enfim ao porto

do tempo presente,

no corpo seminal

da tarde em progresso.


            (Amneres, outubro, 2023)

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Diário de Viagem

 




Drummondiana


No meio do caminho

tinha uma pedra

que logo contornei

e segui adiante.


Tinha uma pedra

mas a pulei, 

de súbito, no susto,

e segui adiante.


Tinha uma pedra

e simplesmente

a ignorei

e segui adiante.


Tinha uma pedra,

olhei-a de relance,

admirei sua presença pétrea

e segui adiante.


Tinha uma pedra

incorporada à paisagem,

em sua beleza bruta de pedra

e segui adiante.


Tinha um pedra

e ela era parte de mim

(trago-a comigo no rim)

e segui adiante.


Tinha uma pedra,

olhei-a e eu era a pedra

no meio do caminho

(que me leva a mim).


          (Amneres, agosto, 2023)

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Diário de Viagem


 Magmas


Um objeto voador

não identificado

sobrevoou o Plano

Piloto lá do alto do

pico da Torre de TV.

Será anjo ou ET,

penso cá comigo

sem saber ao certo

o que tenho sonhado,

imaginado ou visto

sob o imenso céu

do Planalto,  

desde que aqui pousei,

em tempos longínquos.


Agora mesmo, eu vi

passar por mim o flash

da sombra de um zumbi,

atravessando o asfalto,

vestido com mulambos,

como um rei portando

um manto maltrapilho,

disfarçado de mendigo

ou um Jesus da cena épica 

do Auto de um Ariano

compadecido, 

a me lembrar o quão 

distante estamos 

da cidade profetizada

por Dom Bosco.


Segui pelo Eixo Monumental

até a altura do Memorial JK,

onde a escultura de um 

presidente icônico

aponta o horizonte vasto,

além do largo terrapleno 

onde se assenta a praça, 

circundada por palácios.

Em todo o campo de visão,

o céu azul é soberano

e lá no fundo, o espelho

das águas do Lago Paranoá

reflete o que é de sofrer

e o que é de sonhar

nessa paisagem

de sutis arcanos.


Manter o encanto é possível,

quando se vive tanto?

Pergunta-se a alma 

sexagenária, ao perder o olhar 

sobre os arcos de Oscar.

Das ruínas do Templo

de Zeus ao Coliseu romano,

das Pirâmides do Egito

ao Kremlin de Nikolai,

as colunas sustentaram

o cetro de deuses, faraós,

czares e generais.

Nas terras altas do planalto,

ergueram tronos e catedrais,

hastes suspensas 

sob palácios colossais. 


E a multidão sem rumo

segue, abandonada

à própria sorte, desde

tempos imemoriais.

Horda de servos e miseráveis,

mortos-vivos, sem ter

quem lhes chore ou salve.

Pode-se vê-los nos becos,

sob escombros, vagando

pelas ruas das cidades.

Esquálidas silhuetas

sangrando a felicidade, 

ruínas do pensamento.


Nos magmas subterrâneos

das palavras, o poema

expele sua lava de silêncio.


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Diário de Viagem


Êxodos


Pássaros.

O ronco de um trovão,

no alto.

Nuvens esparsas

no céu do planalto.

O toque suave

da mais branda brisa

sobre o corpo cálido.


De alguma forma,

tudo remete

a lonjuras escarlates

de outros tempos

da humanidade,

onde homem e natureza

faziam parte de um mundo

em construção.


Tal um verão

ao sul do equador, 

em terras virgens.

Florestas úmidas 

forradas por bougainvilles.

Fauna de asas,

onde se ouvem os sons

de papagaios, araras

e maritacas.

E tantas outras aves

e animais selvagens

que ali se reproduzem 

e vivem.


Tempos de homens felizes.

Não por estarem isentos

da humana dor

ou por não terem cicatrizes, 

mas por serem parte

de um todo harmônico,

ligados à terra

como as raízes das árvores,

que dela se nutrem

e sobrevivem.


Felicidade,

essa vertigem que sentimos

por alguns segundos

e em busca da qual 

nos levantamos 

e prosseguimos,

todas as manhãs

de nossa viagem.


São como sonhos

esses sutis lampejos.

Versos em bandos

chegando e partindo, 

ritmando os pulsos

e o trote do peito.

Poemas são êxodos. 


domingo, 1 de maio de 2022

DIÁRIO DE VIAGEM

 





Febre e abismo

 

Meu sonho era uma encosta,

Entre ela e o mar, precipícios,

Multidões na praia, abaixo

E o caminho era estreito

Para nós, amor, entre abismos.

 

Pelas rochas espremidos,

Nossos corpos abraçados

Quase fundiam-se ao outro,

Na medida em que avançavam,

Testemunhando o suplício

De outros seres condenados.

 

Quando chegamos à praia,

No mar azul mergulhamos,

Febris e arrebatados

Pelo amor, em benefício.

Mas logo nos enredamos

Na trama dos artifícios.

 

Entre torpes corredeiras

Erraram nossos espíritos

E entrei naquelas águas

Cheias de lodo e de larvas,

E de seres demoníacos.

 

Eu, corajosa, lutava,

Enfrentando os malefícios,

Pois sabia que encontrara

A luz que tanto buscara,

Amor, nesses interstícios

De tempo que nos separa.

 

Hoje, vivo a procurá-la,

Alma irmã da minha alma,

Perdição e paraíso.

 

Amneres

 

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Diário de Viagem


Sombras


Um cão sem dono

E o dono do cão

Caminham,

Sem rumo definido,

Pela rua sem nome

Da cidade, indiferente

À dor e ao riso. 


Um cão sem dono

E o dono do cão,

Ao acaso, escolhidos,

Um ao outro, abraçados,

Encharcados,

No corpo molhado

De uma noite 

De granizo.


Maltrapilhos, maltratados,

Cão e homem,

Homem e cão, 

Cada qual em seu rincão,

Condenados à penúria,

Ao relento,  na justa

Medida do chão.


Um cão sem dono

E o dono do cão

Caminhando

Pelos becos e desvãos.

Seu destino está escrito:

Os jazigos temporários

Dos proscritos.


Natimortos, esquecidos,

Viverão as suas vidas

Como os ratos,

Filhos do anonimato,

Sem história,

Sem registro,

Sem perdão.