domingo, 28 de julho de 2019



Madri



Ganhei uma flor de papel

De um gajo italiano,

No Mercado São Miguel.

Seus olhos guardavam

A cor do Mediterrâneo.



No tablado de Espanha, eu vi:

Sapatos, palmas, melodias.

Ritmos de dores,

Mortes, amores,

Ecos de Andaluzia.



Olé, gritavam os gitanos,

Em meu canto imaginário.



Na Plaza de Toros,

Os animais abatidos

E a multidão em frenesi.

Bárbaro espetáculo ao qual

Não pude assistir.



De olhos vendados,

Sorvi sabores

De tapas e sangrias.

E quis morrer de amores,

E vi jorrar o sangue

De Guernica, em agonia.



Olé, gritavam os gitanos,

Em meu canto imaginário.



Eu vi Quixote partindo

Em seu cavalo,

E antigos reinos santos,

Por El Greco retratados.

E vi-te ardendo em chamas,

Sob o reino de Picasso



E em distorcidas formas,

No universo de Dali,

Foi quando, Espanha,

Mais eu te entendi.

Olé, Cidade almodovariana,

Madri e seus relicários.



Olé, gritavam os gitanos,

Em meu canto imaginário.



Amoroso

A leveza de um pássaro
Atravessa-me a noite
Insone.
Talvez ainda possa voar,
Ruir em versos,
Outra vez amante
Do sopro quente
E úmido das palavras
Êxtase, transe, arte,
E mesmo fim,
E mesmo lápide.

Essas me tomam
E me movem,
Hoje, em direção
Ao grave hálito
Dessa estranha noite
Que calou de um golpe
O transcendente
Revelado em voz e violão,
O verbo feito acorde,
Em total intimidade
Com o ritmo
Do que em nós
É eternidade.

Morrer deve ser isso,
Desprender-se do corpo
Das palavras
E bater asas,
“O resto é mar,
é tudo que eu não sei contar
São coisas lindas
que eu tenho pra te dar
Fundamental é mesmo o amor,
é impossível ser feliz sozinho”.

(Versos de Wave, de Tom Jobim, na voz e violão de João Gilberto, em seu magistral disco Amoroso).

DIÁRIO DE VIAGEM




Vórtice

Esse silêncio encíclico
Rodopiando dentro do ouvido.
Esse frio interno impedindo
O fluxo de calor no plexo.
Essa saudade exangue
Sobre a fuligem do amor
Ausente. Esse desejo latente
Dentro do tempo estanque.
Esse sopro dentro do sempre.
Esse inominável nome.


quarta-feira, 3 de abril de 2019

Diário de Viagem


 
Medo (Clarice Lispector, 1975)


Pane

Um dia, assistiu a uma criança
De cinco anos desaprender a andar.
De repente, tombara, cambaleante;
não segurava as próprias pernas;
E ficava engatinhando pela casa
Como um bebê gigante.

A imagem dessa criança em sua
Memória deixa-a em pânico:
O medo se espalhando pelo corpo
Como um gás paralisante,
um vírus silencioso dominando
A mente, até lhe assumir o comando.

Ela sempre o sentiu por perto
(O medo), como uma sombra
Que, de repente, nubla o tempo;
Como um fantasma, um vulto
No quarto, a lhe assombrar o sono,
A alterar seus batimentos.

No dia em que extirpou um tumor
Do colo do útero, encarou
O monstro, face a face.
Ele tentou minar suas defesas,
Deixando-a inerte, presa ao leito,
Como se algo a acorrentasse.

Quando reagiu aos seus ataques,
O renegado temporariamente fugiu
Para um umbral, um passo à frente,
De modo que ela o pressentisse,
Como um vento frio a lhe eriçar
A pele, a golpear seu ventre.

Seu pior pesadelo é a imagem
De uma bola que vai crescendo,
crescendo e rolando em sua direção,
Até quase esmaga-la, uma vez
E outra vez, e mais outra. Então,
Acordar, aterrorizada pela sensação.

Isso sempre acontece quando ela
Tem febre. Sabe que está doente
Quando a bola de fogo, de repente,
Começa a girar e a crescer,
Dentro da noite, cortando seu sono
Como um tsunami incandescente.

Vive sob o risco de uma pane,
Um curto circuito que lhe parta
O coração, que o estilhace.
Há dores assim, irremediáveis.
Lá fora, quase amanhece. Viver
É sofrer com arte; amar, enfim.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019


Se eu falasse
a língua dos anjos

A noite se arrasta
Com seus tentáculos
De sombra e presságios.

O medo é da idade do mal,
Acompanha o homem
Desde o pecado original.

Ontem, na beira-mar, vi
Sua carcaça, maçã carcomida
Rolando em águas rasas.

O anel feito de nuvens
Desfez-se no crepúsculo
E o músculo da face contraiu-se.

Andei léguas de silêncio
Até perdoar. Hoje,
Reaprendi a falar.

Daqui a pouco, amanhece
E cantarei, na língua do sol:
“O amor é bom, não quer o mal,
Não sente raiva ou se envaidece”.

Vem, amor, que é verão,
Em meu coração Nordeste.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018



Beira-mar

A ideia que tenho
De felicidade é a visão
Do oceano azul,
Em dias de verão.

Gosto do gosto
De sal na pele
Curtida pelo sol,
Quando tudo o mais
Está em paz.

Gosto do ardor
Da alma bronzeada,
Do desejo aceso,
Recendendo a alga.

Meus olhos mareados
Tomam a forma e o fulgor
Da água furtacor.

Meus lábios bebem mar
E o tempo se dissolve
No corpo das ondas
Quebrando, na preamar.

Na praia, vivo o tempo
Das marés em movimento;
Espumas do pensamento.

Na maré seca, caminho
De manhãzinha, molhando
Os pés nas águas rasas.

Na maré cheia, de tardezinha,
Contemplo nuvens, na enseada,
E o vôo baixo das andorinhas.

Meu calendário é lunar,
Nesses verões à beira-mar.

Quarto-minguante,
É tempo de chorar,
Lavar as mágoas
Nas ondas altas.

Quarto-crescente é queijo
Cortado, lua de bruxa,
Quando tudo exulta
E começa a se renovar.

Lua nova é quando
O círculo se completa,
E sua luz se expande
Sobre a noite do Planeta.

Meu corpo todo estremece,
Aguardando em êxtase
A Lua cheia vingar,

Dentro do mar, em certos
Ângulos, quando Deus,
Plenamente se expressa.

E então o ciclo recomeça:
Minguar, crescer, completar-se,
Brilhar; como dia e noite,
Vida e morte, dormir e acordar.

Toda dor traz em si a cura,
É o que minha alma depura
Dessas vivências de marés e luar.

Mesma a doença terminal,
A própria morte não é definitiva,
Como contou um amado irmão,
Pouco antes de sua partida.

Quarto minguante,
Tempo de despedidas,
O pensamento
Rasga o coração,

Mas o poema irrompe
No corpo da madrugada,
E recompõe em mim
O ciclo virtuoso da vida.

Amneres
Brasília, 20/12/2018




London

Kurt, tinhas um
Jeito de rir
tão lindo,
Franzindo o rosto,
A boca e o nariz,
Apertando os olhos
De céu, azuis,
Como um blues
De Rod Stewart.

Kurt, menino
Suíço-alemão,
Foi tão fácil te curtir,
No verão, tão London,
London, dizer sim
Ao não. Curtir
Sade e Bonnie Tyler
Na fita cassete
Que me deste.

Kurt, eu te amei
E tu nem soubeste,
Tamanha era a distância
Entre Zurique e o Centro-Oeste
Do Brasil, céu de anil.

Se pudesse traduzir
Hoje, a ideia que guardo
De ti, desenharia cachos
Louros em meus pensamentos
E pintaria de branco
Nossos gozos juvenis.

Kurt, esse poema-síntese
É só pra te fazer feliz,
Por um momento,
Dentro do espaço-tempo
De uma memória
Que me chega agora,
E me encharca os olhos,
Pouco antes de dormir.

          Amneres
          Brasília, 14/12/2018