quarta-feira, 3 de abril de 2019

Diário de Viagem


 
Medo (Clarice Lispector, 1975)


Pane

Um dia, assistiu a uma criança
De cinco anos desaprender a andar.
De repente, tombara, cambaleante;
não segurava as próprias pernas;
E ficava engatinhando pela casa
Como um bebê gigante.

A imagem dessa criança em sua
Memória deixa-a em pânico:
O medo se espalhando pelo corpo
Como um gás paralisante,
um vírus silencioso dominando
A mente, até lhe assumir o comando.

Ela sempre o sentiu por perto
(O medo), como uma sombra
Que, de repente, nubla o tempo;
Como um fantasma, um vulto
No quarto, a lhe assombrar o sono,
A alterar seus batimentos.

No dia em que extirpou um tumor
Do colo do útero, encarou
O monstro, face a face.
Ele tentou minar suas defesas,
Deixando-a inerte, presa ao leito,
Como se algo a acorrentasse.

Quando reagiu aos seus ataques,
O renegado temporariamente fugiu
Para um umbral, um passo à frente,
De modo que ela o pressentisse,
Como um vento frio a lhe eriçar
A pele, a golpear seu ventre.

Seu pior pesadelo é a imagem
De uma bola que vai crescendo,
crescendo e rolando em sua direção,
Até quase esmaga-la, uma vez
E outra vez, e mais outra. Então,
Acordar, aterrorizada pela sensação.

Isso sempre acontece quando ela
Tem febre. Sabe que está doente
Quando a bola de fogo, de repente,
Começa a girar e a crescer,
Dentro da noite, cortando seu sono
Como um tsunami incandescente.

Vive sob o risco de uma pane,
Um curto circuito que lhe parta
O coração, que o estilhace.
Há dores assim, irremediáveis.
Lá fora, quase amanhece. Viver
É sofrer com arte; amar, enfim.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019


Se eu falasse
a língua dos anjos

A noite se arrasta
Com seus tentáculos
De sombra e presságios.

O medo é da idade do mal,
Acompanha o homem
Desde o pecado original.

Ontem, na beira-mar, vi
Sua carcaça, maçã carcomida
Rolando em águas rasas.

O anel feito de nuvens
Desfez-se no crepúsculo
E o músculo da face contraiu-se.

Andei léguas de silêncio
Até perdoar. Hoje,
Reaprendi a falar.

Daqui a pouco, amanhece
E cantarei, na língua do sol:
“O amor é bom, não quer o mal,
Não sente raiva ou se envaidece”.

Vem, amor, que é verão,
Em meu coração Nordeste.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018



Beira-mar

A ideia que tenho
De felicidade é a visão
Do oceano azul,
Em dias de verão.

Gosto do gosto
De sal na pele
Curtida pelo sol,
Quando tudo o mais
Está em paz.

Gosto do ardor
Da alma bronzeada,
Do desejo aceso,
Recendendo a alga.

Meus olhos mareados
Tomam a forma e o fulgor
Da água furtacor.

Meus lábios bebem mar
E o tempo se dissolve
No corpo das ondas
Quebrando, na preamar.

Na praia, vivo o tempo
Das marés em movimento;
Espumas do pensamento.

Na maré seca, caminho
De manhãzinha, molhando
Os pés nas águas rasas.

Na maré cheia, de tardezinha,
Contemplo nuvens, na enseada,
E o vôo baixo das andorinhas.

Meu calendário é lunar,
Nesses verões à beira-mar.

Quarto-minguante,
É tempo de chorar,
Lavar as mágoas
Nas ondas altas.

Quarto-crescente é queijo
Cortado, lua de bruxa,
Quando tudo exulta
E começa a se renovar.

Lua nova é quando
O círculo se completa,
E sua luz se expande
Sobre a noite do Planeta.

Meu corpo todo estremece,
Aguardando em êxtase
A Lua cheia vingar,

Dentro do mar, em certos
Ângulos, quando Deus,
Plenamente se expressa.

E então o ciclo recomeça:
Minguar, crescer, completar-se,
Brilhar; como dia e noite,
Vida e morte, dormir e acordar.

Toda dor traz em si a cura,
É o que minha alma depura
Dessas vivências de marés e luar.

Mesma a doença terminal,
A própria morte não é definitiva,
Como contou um amado irmão,
Pouco antes de sua partida.

Quarto minguante,
Tempo de despedidas,
O pensamento
Rasga o coração,

Mas o poema irrompe
No corpo da madrugada,
E recompõe em mim
O ciclo virtuoso da vida.

Amneres
Brasília, 20/12/2018




London

Kurt, tinhas um
Jeito de rir
tão lindo,
Franzindo o rosto,
A boca e o nariz,
Apertando os olhos
De céu, azuis,
Como um blues
De Rod Stewart.

Kurt, menino
Suíço-alemão,
Foi tão fácil te curtir,
No verão, tão London,
London, dizer sim
Ao não. Curtir
Sade e Bonnie Tyler
Na fita cassete
Que me deste.

Kurt, eu te amei
E tu nem soubeste,
Tamanha era a distância
Entre Zurique e o Centro-Oeste
Do Brasil, céu de anil.

Se pudesse traduzir
Hoje, a ideia que guardo
De ti, desenharia cachos
Louros em meus pensamentos
E pintaria de branco
Nossos gozos juvenis.

Kurt, esse poema-síntese
É só pra te fazer feliz,
Por um momento,
Dentro do espaço-tempo
De uma memória
Que me chega agora,
E me encharca os olhos,
Pouco antes de dormir.

          Amneres
          Brasília, 14/12/2018

terça-feira, 7 de agosto de 2018

DIÁRIO DE VIAGEM




Once upon a time,
The words kept silence in my mind 
And languages were mixed in my mouth.
Since there, un poem not written
Has grown on me, inside,
Changing my beliefs, so my broken heart,
Again and one more time,
Begun to believe,
Once upon a time.

domingo, 10 de junho de 2018

DIÁRIO DE VIAGEM


Teorema

Pi é um número infinito.
Ver-te sempre faz-me rir.
Amor é um fio axiomático
ligado entre mim e ti.

terça-feira, 27 de março de 2018



Despoesia

Duas araras,
azuis e amarelas,
voam baixo,
raspando o teto
do carro.

A tarde cai
e tudo é possível,
no instante
onde cabem Deus
e o indizível.

A gata persa
espreita, à porta,
quando giro a chave,
ela range (a porta)
e arranha o piso.

Em Brasília,
a madeira trabalha mais
(dizem).
Deve ser por isso
que tudo é concreto e vidro
nos palácios de Niemeyer.

Tantas formas
formam as nuvens
quantos são os sonhos,
em meus olhos de sal.

O verso é portal
onde passo e permaneço:
pedra fundamental.

Daqui do alto,
dá para ver
o começo do mundo,
nos relevos
do Planalto.

(Meu coração
e o cerrado seco,
paisagens de fins
e recomeços).

Há sombra e luz
nesses crepúsculos.
Bichos geográficos
desenhando mapas
no topo do céu.

A gata pula do chão
à cadeira e dela,
à escrivaninha.

Nessa tênue linha
entre o vão e os objetos,
o poema se enrosca
às patas da felina
e dá o salto.

De manhãzinha,
é bom sonhar,
quase dormir,
quase acordar.

O dia chega
e passa por mim,
sem deixar rastros.
Quase interrompo
seu fluxo automático.

Tudo é despoesia
nesses dias,
mas despoesia
é ainda o poema
acontecendo.

Há um rio de vozes
no vazio.
Lá fora, chove tanto
quanto aqui dentro.

O que não acaba,
nunca começou:
eternidade.

Um raio, seguido
do estrondo
de um trovão,
põe o mundo
em movimento.

Gira a rosa dos ventos
até fundir-se à luz
de um novo dia

(Barco ancorado ao cais).
Que venha brando
e seja de paz.