quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Diário de Viagem


 Magmas


Um objeto voador

não identificado

sobrevoou o Plano

Piloto lá do alto do

pico da Torre de TV.

Será anjo ou ET,

penso cá comigo

sem saber ao certo

o que tenho sonhado,

imaginado ou visto

sob o imenso céu

do Planalto,  

desde que aqui pousei,

em tempos longínquos.


Agora mesmo, eu vi

passar por mim o flash

da sombra de um zumbi,

atravessando o asfalto,

vestido com mulambos,

como um rei portando

um manto maltrapilho,

disfarçado de mendigo

ou um Jesus da cena épica 

do Auto de um Ariano

compadecido, 

a me lembrar o quão 

distante estamos 

da cidade profetizada

por Dom Bosco.


Segui pelo Eixo Monumental

até a altura do Memorial JK,

onde a escultura de um 

presidente icônico

aponta o horizonte vasto,

além do largo terrapleno 

onde se assenta a praça, 

circundada por palácios.

Em todo o campo de visão,

o céu azul é soberano

e lá no fundo, o espelho

das águas do Lago Paranoá

reflete o que é de sofrer

e o que é de sonhar

nessa paisagem

de sutis arcanos.


Manter o encanto é possível,

quando se vive tanto?

Pergunta-se a alma 

sexagenária, ao perder o olhar 

sobre os arcos de Oscar.

Das ruínas do Templo

de Zeus ao Coliseu romano,

das Pirâmides do Egito

ao Kremlin de Nikolai,

as colunas sustentaram

o cetro de deuses, faraós,

czares e generais.

Nas terras altas do planalto,

ergueram tronos e catedrais,

hastes suspensas 

sob palácios colossais. 


E a multidão sem rumo

segue, abandonada

à própria sorte, desde

tempos imemoriais.

Horda de servos e miseráveis,

mortos-vivos, sem ter

quem lhes chore ou salve.

Pode-se vê-los nos becos,

sob escombros, vagando

pelas ruas das cidades.

Esquálidas silhuetas

sangrando a felicidade, 

ruínas do pensamento.


Nos magmas subterrâneos

das palavras, o poema

expele sua lava de silêncio.


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Diário de Viagem


Êxodos


Pássaros.

O ronco de um trovão,

no alto.

Nuvens esparsas

no céu do planalto.

O toque suave

da mais branda brisa

sobre o corpo cálido.


De alguma forma,

tudo remete

a lonjuras escarlates

de outros tempos

da humanidade,

onde homem e natureza

faziam parte de um mundo

em construção.


Tal um verão

ao sul do equador, 

em terras virgens.

Florestas úmidas 

forradas por bougainvilles.

Fauna de asas,

onde se ouvem os sons

de papagaios, araras

e maritacas.

E tantas outras aves

e animais selvagens

que ali se reproduzem 

e vivem.


Tempos de homens felizes.

Não por estarem isentos

da humana dor

ou por não terem cicatrizes, 

mas por serem parte

de um todo harmônico,

ligados à terra

como as raízes das árvores,

que dela se nutrem

e sobrevivem.


Felicidade,

essa vertigem que sentimos

por alguns segundos

e em busca da qual 

nos levantamos 

e prosseguimos,

todas as manhãs

de nossa viagem.


São como sonhos

esses sutis lampejos.

Versos em bandos

chegando e partindo, 

ritmando os pulsos

e o trote do peito.

Poemas são êxodos. 


domingo, 1 de maio de 2022

DIÁRIO DE VIAGEM

 





Febre e abismo

 

Meu sonho era uma encosta,

Entre ela e o mar, precipícios,

Multidões na praia, abaixo

E o caminho era estreito

Para nós, amor, entre abismos.

 

Pelas rochas espremidos,

Nossos corpos abraçados

Quase fundiam-se ao outro,

Na medida em que avançavam,

Testemunhando o suplício

De outros seres condenados.

 

Quando chegamos à praia,

No mar azul mergulhamos,

Febris e arrebatados

Pelo amor, em benefício.

Mas logo nos enredamos

Na trama dos artifícios.

 

Entre torpes corredeiras

Erraram nossos espíritos

E entrei naquelas águas

Cheias de lodo e de larvas,

E de seres demoníacos.

 

Eu, corajosa, lutava,

Enfrentando os malefícios,

Pois sabia que encontrara

A luz que tanto buscara,

Amor, nesses interstícios

De tempo que nos separa.

 

Hoje, vivo a procurá-la,

Alma irmã da minha alma,

Perdição e paraíso.

 

Amneres

 

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Diário de Viagem


Sombras


Um cão sem dono

E o dono do cão

Caminham,

Sem rumo definido,

Pela rua sem nome

Da cidade, indiferente

À dor e ao riso. 


Um cão sem dono

E o dono do cão,

Ao acaso, escolhidos,

Um ao outro, abraçados,

Encharcados,

No corpo molhado

De uma noite 

De granizo.


Maltrapilhos, maltratados,

Cão e homem,

Homem e cão, 

Cada qual em seu rincão,

Condenados à penúria,

Ao relento,  na justa

Medida do chão.


Um cão sem dono

E o dono do cão

Caminhando

Pelos becos e desvãos.

Seu destino está escrito:

Os jazigos temporários

Dos proscritos.


Natimortos, esquecidos,

Viverão as suas vidas

Como os ratos,

Filhos do anonimato,

Sem história,

Sem registro,

Sem perdão.

sábado, 4 de setembro de 2021

Diário de Viagem

 


Subterrâneos


As águas

Dos meus olhos,

Arredias, vertem

E evadem-se

Em nuvens 

De estanho.


Quase não caem

Ou umedecem,

Chuvas esparsas,

Vêm e vão entre

Ventos breves.


Veios, veredas,

Pingos d’água, 

Só na alma, 

Elas crescem

Em rebanho.


As águas

Subterrâneas

Dos meus olhos,

Oceanos.

      

          Amneres, 2021

sábado, 26 de setembro de 2020

Diário de Viagem


Linguagem


Daqui do alto,

Vejo uma praia

De águas doces;

Vejo um jardim;

Uma mulher limpando

O assoalho;

Um homem exercitando-se,

Sob um sol a pino.


Vejo a manhã espreguiçar-se,

Desprendendo-se,

Lentamente,

Do frescor matutino.

Já passa das nove

E meu olhar peregrino

Perde-se no azul

Da paisagem.


Vê quanta luz

Há na viagem!

Dela usufrui;

Deixa que te mate a sede.

Também eu estou

A beber de sua fonte,

Como decerto

Toda a humanidade.

Selemos nossa sorte

Com o substantivo beijo;

Latentes desejos vertendo

Em nossos rios interiores;

Nascente linguagem.


              Amneres

              26/09/2020

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Diário de Viagem



Costa, Lúcio e mar


Começo o poema, catando

Folhas brancas em meio 

Às caixas da mudança. 


Dançam, balançam

As anáguas, as lânguidas 

Águas do Lago Paranoá.


Ah, se fosse o mar

A lavar as mágoas,

Até onde a vista alcança!


E tudo que se visse fosse

Outra vez um novo mundo

A desnudar-se ao olhar.


Para sempre, amar, 

Sopram, sussurrantes, 

As brancas vozes do mar.


De dentro de um búzio, 

Enterrado nas entranhas

Desse Lago mítico,


Ecoam os sons idílicos

Da Cidade sonhada

Por um certo Lúcio. 


Costa é o nome que se dá 

Às terras e enseadas,

Às margens dos oceanos.


Sonhar é levar os mares

Aos longes altiplanos.

Poesia é sabe-los lá...


                Amneres

                22/09/2020